Colaboração: Dayana Andrade
"Uma reconciliação paradoxal torna-se possível: se todos os homens desejam a mesma coisa e nunca se entendem, porém, aqueles que odeiam juntos o mesmo adversário se entendem com muita facilidade. De certa forma, essa harmonia é o que chamamos de política! Também é o que eu chamo de mecanismo da vitima única, o mecanismo do bode expiatório"
No artigo dessa semana vamos responder a uma das perguntas mais recorrentes que recebemos: “por que vocês gostam tanto de eucalipto?”. Para começo de conversa, já é bom dizer que não gostamos mais do eucalipto do que de qualquer outra das tantas espécies resilientes e eficientes como ele. Mas, como para muita gente o eucalipto é visto como um vilão, o fato de Ernst Götsch incluí-lo como uma das espécies chave de muitos dos desenhos de agricultura sintrópica abre espaço para um interessante debate. O eucalipto se tornou o bode expiatório para muitos danos ambientais, uma espécie condenada a carregar a culpa de outros. Por isso, é importante ajudar a esclarecer: afinal, por que usamos tanto o eucalipto?
CONTEXTO | Os motivos pelos quais nós gostamos do eucalipto não são tão diferentes daqueles da indústria. É uma planta com rápido crescimento, resistente a condições de solo adversas, não precisa de tantos cuidados e, é claro, produz muita biomassa. Para a indústria, essa biomassa vira papel, embalagens, móveis, casas, cercas, lápis, etc. Para nós, vira adubo, madeira e informação bioquímica. O eucalipto tem um metabolismo acelerado, ou seja, é uma máquina de fazer fotossíntese. Isso significa carbono sequestrado e, quando bem manejado, pode significar também a melhoria da fertilidade do solo, e não o contrário. Mas vamos por partes.
ACUSAÇÕES | Culpado por favorecer incêndios, degradar solo e secar nascentes, o eucalipto é réu de muitas acusações. Como o Ernst diz, uma planta não pode contratar advogados, e por isso não consegue se defender. Mas, o problema não é o eucalipto. Todos esses efeitos negativos são consequência da forma como ele é cultivado. A organização e o manejo dos eucaliptais monodominantes condena o ecossistema à degradação. Não é culpa da planta, mas sim do nosso sistema de produção. Qualquer outra espécie plantada nessas mesmas condições reproduziria os mesmos efeitos danosos daquilo que, com razão, ficou conhecido como “deserto verde”. As monoculturas de eucalipto (e de qualquer outra espécie arbórea) reproduzem a dinâmica, arquitetura e os efeitos de uma floresta clímax envelhecida, pouco antes da formação da clareira. Ou seja, a maior densidade de copa se concentra nos estratos mais altos, com pouca vegetação por baixo. Ou, pior ainda, nenhuma vegetação por baixo - situação garantida pelas sucessivas aplicações de herbicida nos monocultivos convencionais. Isso sim degrada o solo e seca o ambiente tornando-o vulnerável a incêndios.
LÓGICA NATURAL DA CLAREIRA | Quando as árvores de crescimento mais lento de uma floresta chegam à maturidade e começam a fechar o dossel, é sinal de que aquele sistema está se preparando para a clareira. Essas são as espécies de estratos alto e emergente que compõem uma floresta clímax e esse estágio faz parte do ciclo natural daquele ecossistema. Nesta fase, a diminuição da incidência de luz nos estratos inferiores eventualmente faz com que eles diminuam sua densidade. A ausência de vegetação no sub-bosque significa menor produção de biomassa e, com isso, o solo fica menos protegido. Isso permite a entrada de vento seco que retira a umidade do solo, aumenta a temperatura e, consequentemente, causa mudanças drásticas das interações termodinâmicas. O solo fica mais quente que a água da chuva, e isso tanto impede que a água infiltre por diferença de gradiente, quanto contribui para que o solo expulse umidade, o que aumenta a compactação e a degradação. Esse é o ambiente ideal para vários tipos de cipós, lianas e trepadeiras que, por sua vez, amarram as árvores altas umas às outras. Quando uma planta envelhecida cai, outras também caem. Eis como naturalmente surgem as clareiras.
CÓPIA MAL FEITA | Um monocultivo de eucalipto (ou de outra espécie arbórea) reproduz a forma e a função dessa fase do desenvolvimento de uma floresta, ou seja, o seu fim. A diferença é que nos ciclos naturais os fins se ligam aos recomeços, sempre com incremento de energia. O saldo energético de uma clareira florestal é positivo, ou seja, há aumento do capital natural entre o início e o término de um ciclo. Quando o estrato baixo reduz sua densidade isso acontece sem perda de reserva genética. Pelo contrário, assim que a clareira é aberta, todo o banco de sementes é imediatamente acionado para começar um novo ciclo. Não apenas a floresta cria condições físicas favoráveis à vida, como transforma a biomassa acumulada no ciclo atual em investimento para o próximo ciclo, em um incremento exponencial de complexidade. Não por acaso, a fertilidade aumenta em qualquer ecossistema natural livre de interferência humana.
O paradigma agrícola atual reflete nosso pensamento técnico-mecânico. Perdemos capital natural em todas as etapas de nossos ciclos produtivos. Schauberger e Ernst Götsch chegaram à mesma conclusão: devemos entender e aplicar o sistema econômico da Natureza em tudo, daí vem o verdadeiro ganho de recursos. A lógica puramente tecno-mecânica busca a forma mais eficiente de explorar recursos, enquanto os processos baseados na natureza concentram-se na melhor maneira de criá-los. Figura extraída do livroLiving Energies“
ESTRATIFICAÇÃO E CONSÓRCIOS | Todos os efeitos negativos atribuídos ao eucalipto não ocorreriam caso ele fosse plantado em consórcio com outras espécies. Em sistemas estratificados e biodiversos - com vários andares ocupando diferentes faixas de captação de luz – acontecem efeitos termodinâmicos que garantem um microclima favorável aos processos de vida. Por exemplo, o desenho que o Ernst implantou na Fazenda da Toca tinha capim mombaça por baixo, fruteiras nos estratos médio e alto, e eucalipto no estrato emergente. Seria de se esperar um resultado desastroso ao combinar duas plantas famosas por “secar o solo”, como o eucalipto e a bananeira. Nada disso. Esse sistema atravessou a famosa crise hídrica do estado de SP em 2014 sem grandes danos. No pico da seca, víamos a bananeira com as folhas abertas, em um claro sinal de ausência de estresse. A estratificação organiza as plantas verticalmente de forma a funcionar como uma estação de captação e manutenção de água. Daí vem a célebre frase do Ernst, “água se planta”. Não porque onde há água, há vida. Mas o contrário. Para Götsch, onde há vida, há água.
Quatro "andares" de vegetação significam mais fotossíntese e mais água no sistema. Capim mombaça, banana, cítricos e eucalipto na Fazenda da Toca.
"Não é porque onde há água, há vida. Mas o contrário. Onde há vida, há água."
Um sistema estratificado regula temperatura e umidade.
CHUVA QUE CAI, CHUVA QUE SE BEBE | Viktor Schauberger demonstrou que em florestas naturais a temperatura do solo costuma ser poucos graus mais fria que a água da chuva. Isso quer dizer que, além de a chuva naturalmente chegar ao solo por gravidade, também é verdade que o solo “bebe” água por sucção. Ou seja, a infiltração ocorre também por diferença de gradiente de temperaturas (do quente para o frio). A fotossíntese em andares distintos contribui para isso, pois maior peso nos estratos inferiores e menor ocupação na medida que alcança as árvores mais altas permite uma sobreposição gradual de faixas de captação de luz. Mas não só isso. A fotossíntese é um processo endotérmico (ao invés de emitir calor, esfria o ambiente). Portanto, essas camadas graduais funcionam, segundo Götsch e Schauberger, como biocondensadores, capazes de bombear água por meio de processos termodinâmicos.
Sem sub-bosque, o solo aquece e resseca.
EUCALIPTO AJUDA NATIVAS | Incluir diferentes espécies em andares já seria bom. Mas, ainda não é o suficiente. Há que se incluir plantas de diferentes estágios sucessionais. Na classificação do Ernst, o eucalipto é uma árvore de estrato emergente, que se estabelece nos estágios iniciais de floresta secundária e que tem a capacidade de transitar até o clímax se não houver outra espécie para substituí-lo. Ou seja, é uma árvore de rapidíssimo crescimento e pode viver muito tempo, acompanhando a floresta até sua maturidade. Por exemplo, em nossa fazenda no Rio de Janeiro, o Ernst plantou, entre diversas outras espécies, eucalipto e araribá, ambas emergentes. A primeira, de rápido crescimento, ajudou a criar a segunda, espécie climáxica nativa de madeira nobre. Se tivéssemos plantado o araribá desde o começo, as mudas não teriam suportado a incidência do sol. O eucalipto puxou o crescimento do araribá com sua sombra, biomassa e informação bioquímica. Podado duas vezes ao ano, o eucalipto despeja para os vizinhos enzimas e hormônios relativos ao crescimento, além de oferecer nutrientes e proteção com sua biomassa que é fragmentada e organizada nas linhas das árvores. Incontestavelmente, uma espécie exótica e odiada ajudou a estabelecer uma espécie nativa mais exigente. No lugar do eucalipto, poderia também ter sido utilizadas outras emergentes, por exemplo, o guapuruvu ou a trema micanthra. Não nos apegamos a uma ou outra espécie, mas na organização e dinâmicas do plantio no espaço e no tempo. Graças às suas características, o eucalipto poderia ser um grande aliado na recuperação de áreas degradadas.
O araribá "Centrolobium tomentosum" cresce saudável sob o eucalipto.
Por isso, fica aqui o convite: vamos fazer nossos próprios testes e recontar a história a partir de nossa experiência real, sem falsos heróis, mas também sem bodes expiatórios. Ao focar nossas frustrações no eucalipto, e não na lógica que alimenta seus cultivos, perdemos a chance de identificar a verdadeira origem do problema e pouco fazemos para, de fato, resolvê-lo.