A agricultura é de longe a atividade mais inovadora e revolucionária que a humanidade já testemunhou. Ela moldou todos os aspectos da nossa existência e definiu como percebemos e nos relacionamos com o mundo natural. Através da agricultura, nós mudamos o planeta de uma forma que nenhuma espécie jamais fez, deixando nossos rastros desde a topo da atmosfera até o fundo do oceano.
Nesse sentido, o que sabemos sobre a história da agricultura nos mostra que o polêmico debate em torno do que levou caçadores e coletores à cultivar a terra é mais especulativo do que concreto. Há teorias que sustentam que a motivação dos primeiros agrupamentos agrícolas esteve relacionada com aspectos tão distintos quanto: adaptação às mudanças climáticas após a última glaciação; necessidade de ter um meio mais eficiente de acesso à comida; evolução inevitável do progresso técnico; limitações físicas como baixa estatura e pouca força física de alguns que não seriam aptos à caça e à coleta; ou ainda expansão demográfica (ora como motivo, ora como resultado); e há até quem levante a hipótese de que o desejo de posse pode ter sido uma motivação para as comunidades começarem a se estabelecer, cuidar e proteger alguns bens. Naturalmente, predominam as abordagens que entendem este como sendo um processo composto por diferentes variáveis simultâneas, atuando em um longo intervalo de tempo.
No Oriente, por exemplo, um dos mais antigos centros de origem da agricultura, a fase de transição de caçadores e coletores para protoagricultores teria durado mais de 1.000 anos. Os achados arqueológicos que nos contam essa história são compostos por vestígios de plantas e animais domesticados, utensílios de trabalho como foices, machados e moendas, cerâmicas para armazenamento, além de uma evidente evolução na constituição das habitações que se formaram entre 9.500 e 9.000 anos antes da Era presente. Um certo nível de exigência de complexidade social parece ser indissociável do surgimento da agricultura,não restando dúvidas, portanto, quanto à correlação entre esta atividade produtiva e muitas mudanças de ordem ecológica, social, econômica, cultural e tecnológica.
Outra explicação que as pesquisas arqueológicas buscam é com relação ao que motivou a transformação tecnológica seguinte da agricultura: aquela em que se passou de um sistema de produção itinerante para um sistema de produção permanente. O fato de o novo modelo ser mais trabalhoso e menos rentável parece sugerir que apenas uma forte restrição poderia impelir tal mudança. Nesse caso a pressão demográfica é a mais provável das hipóteses - mas não sem estar associada às limitações ecológicas e técnicas circunstanciais.
Enquanto que na agricultura itinerante a base técnica é a derrubada e queima, na agricultura permanente começa-se a trabalhar com o arado e com o pousio (para garantir a recuperação das áreas exauridas). A vantagem, em comparação com a agricultura itinerante, seria a da necessidade de uma menor área disponível para uma maior produção proporcionalmente.
Para o pesquisador David Montgomery, que estuda a emergência e a decadência das civilizações pelos rastros de erosão que deixaram no solo, o avanço da fronteira agrícola tem relação direta com as condições ecológicas cujas limitações foram, a cada passo, sendo colocadas apenas um pouco mais adiante. Ou seja, primeiro foram escolhidas as terras de boa qualidade em regiões com um bom regime de chuvas. Exauridas essas terras e com o desenvolvimento da irrigação, a atividade agrícola pode migrar para as terras de boa qualidade, mas sem chuvas. Com a invenção do arado, foi possível também expandir para as terras nem tão boas assim ou voltar àquelas já desgastadas pelo uso. O resultado direto da agricultura intensiva e do pastoreio de cabras foi o abandono de aldeias inteiras na região central da Jordânia cerca de 6000 a.C, deixando para trás um rastro de erosão e degradação do solo..
Um dos registros escritos mais antigos sobre agricultura é a "A Instrução do Fazendeiro”, uma espécie de manual de técnicas agrícolas da Suméria. Escrito como uma carta com orientações de um agricultor para seu filho, nele é citado o uso do arado junto com uma espécie de semeador, a técnica de pousio, a irrigação e a preocupação com a salinização e, sobretudo, expressamente é desencorajado qualquer tipo de experimento. A inovação na agricultura é vista como um risco com o qual a atividade agrícola, simplesmente, não pode arcar.
Esses exemplos nos apontam duas condições intrínsecas da agricultura que, aparentemente, fizeram com que ela não fosse um ambiente fértil para a inovação na remota realidade suméria e que se reproduzem até a atualidade.
Quais sejam, as ideias de que 1) estamos no limite ecológico e 2) de que não podemos arriscar diminuir a produção sob o risco da escassez alimentar. Ou seja, a história da agricultura mostra que essa atividade está constantemente fugindo ou combatendo a inexorabilidade da natureza e sempre constrangida pelo conflito entre ter que atender as demandas do presente imediato ou ponderar a responsabilidade com o futuro, o que significaria priorizar práticas mais sustentáveis.
O fato de termos, ao longo desses 10 mil anos, superado (ou adiado) as imposições dos limites da natureza, induz uma certa crença ou fé de que a solução para a crise ambiental crônica virá exclusivamente pela via tecnológica. Inteligência artificial, robotização, nanotecnologia ou descoberta da água em Marte, surgem como esperanças que um deus ex machina resolva todos os grandes impasses, sem que precisemos mudar significantemente nossas estruturas sociais e modelos de produção e consumo. Essa visão ignora o fato de que, como disse Lynn Margulis, até agora a única forma pela qual nós, seres humanos, provamos nossos domínios foi pela expansão. “Continuamos a ser atrevidos, broncos e recentes, mesmo à medida que nos tornamos mais numerosos”. Não podemos reproduzir mecanismos de vida e de incremento do capital natural que ainda não conseguimos nem ao menos descrever completamente.
No outro extremo, temos aqueles que advogam pelo retorno às agriculturas tradicionais, e a uma natureza pristina mítica. No entanto, vivemos uma época em que as atividades humanas apesar de não controlarem a natureza (como professado pelo ideal Iluminista) de fato determinam todas as dimensões da vida ecológica. E os movimentos “back to land” dos anos 60 e 70 apesar de terem deixado um importante legado, também são um roteiro já conhecido de convicções e limites.
Quando estudamos a história da agricultura tendo a agricultura sintrópica como perspectiva, suspeitamos que tampouco uma solução conciliadora entre o retorno às tradições associado às novas tecnologias pode ser suficiente pois, os paradigmas que as fundamentam foram justamente as racionalidades que nos trouxeram ao ponto em que hoje nos encontramos, tanto de crise ecológica quanto de crise produtiva.
Não mudaremos a maneira pela qual interagimos com a natureza enquanto um manejo mais “integrado”, ou “ecológico”, ou “sustentável” estiver condicionado a determinações biológicas, restrições tecnológicas, coerções legais ou punições sociais. Por outro lado, se mudarmos nossa matriz de pensamento e pudermos nos reposicionar enquanto espécie no ecossistema - como a agricultura sintrópica sugere e opera - ao menos uma luz no fim do túnel pode começar a aparecer.