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A poda como adubo e irrigação

Para Ernst Götsch, a poda é o combustível das transformações e a chave para a aceleração da sucessão natural. Segundo a ótica da Agricultura Sintrópica, o papel do ser humano no planeta seria, tal como qualquer outra espécie, o de manejar ecossistemas no sentido de favorecer dinâmicas de complexificação de vida, tendo como meio as relações simbióticas com outros organismos. Sob essa perspectiva, o agricultor sintrópico seria capaz de favorecer a produção primária de biomassa, por meio da poda das espécies segundo os critérios da estratificação, ciclo de vida e lugar na sucessão. Busca-se assim criar um ambiente de constante ciclagem e incremento de nutrientes orgânicos e inorgânicos, maximizando a fotossíntese e acelerando a capacidade do sistema de metabolizar e converter energia em formas mais complexas de vida.

Ernst e Cimara podando árvores que ficam acima dos cacaueiros

Ernst Götsch se vale de um exemplo didático que facilita a compreensão do papel das podas em ecossistemas naturais, e remete-se ao conhecimento tradicional indígena da região amazônica do Alto Beni, Bolívia, onde o cacau (Theobroma cacao) é nativo. Ainda vivendo de caça e coleta, os indígenas desenvolveram outras percepções sobre o comportamento de espécies que lhes são úteis, construindo assim critérios de identificação de indivíduos altamente produtivos e algumas relações relevantes com o ambiente onde estes estão inseridos. Nesses lugares, o cacau ocorre preferencialmente em beira de rios e canais de vento, locais que são periodicamente submetidos a distúrbios, seja pelos pulsos de inundação fluvial, seja pelos fortes vendavais que normalmente fustigam os vales dos Andes. Os nativos daquela região reportaram ao Ernst que a cada quatro anos o vento é especialmente forte e que o distúrbio é muito grande. De acordo com a percepção dos moradores, isso coincide com os anos de maior produção de cacau.

O cacaueiro produz mais após um distúrbio (Fazenda Olhos D'água)

O que o Ernst fez foi traduzir essa observação para o manejo de seu sistema agrícola. Ou seja, ao trabalhar com espécies como o cacau, que coevoluiram com o distúrbio, a poda correta se torna imprescindível. Isso resulta tanto em boa frutificação quanto em grande beneficio pro sistema inteiro devido ao aporte de biomassa. Diferentemente de outros cultivos agroflorestais de cacau (cacau sombreado), a área do Ernst é manejada em todos os andares. O segredo de sua grande produtividade e qualidade em comparação a outros produtores da região não está na adubação e na irrigação, já que ele prescinde de ambos. Além do zelo usual às árvores de cacau, sua produção depende do manejo e poda de Erytrhinas, jaqueiras, bananeiras e tantas outras espécies que estão presentes na área.

Ernst diz que "a transformação da matéria orgânica oriunda de madeira resulta em frutificação".

Ou seja, a poda funciona como uma adubação e irrigação, só que via processos, e não via insumos. Dessa forma, o agricultor deixa de ser um mero transportador de adubo e água, para atuar como um mediador entre a vegetação e o solo, provendo a este o máximo de "combustível" ao mesmo tempo em que mantém a saúde geral do plantio.

A transformação da matéria orgânica impulsiona o crescimento das plantas cultivadas

Nas ilustrações abaixo, os benefícios que a poda traz para o crescimento das plantas, extraído de um estudo realizado por Joachim Milz (leia aqui).  Livro em espanhol.

Ilustração reproduzida a partir do trabalho de Joachim Milz que representa o impacto que a senescência de plantas maduras traz para o crescimento das demais.
A poda no tempo correto mantém as plantas em um ótimo de crescimento

Em qualquer desenho, Ernst inclui espécies que possuem grande capacidade de produção de biomassa para que possam suprir uma quantidade de matéria orgânica similar ou maior que um ambiente natural, como o “Eucalyptus sp” e a “Acacia mangium”, por exemplo. Como são espécies de ecossistemas com pouca disponibilidade de água e nutrientes, se adaptam aos solos pobres e degradados de outros biomas. O metabolismo rápido dessas plantas permite o processamento de grande quantidade de energia em um período de tempo curto e em condições de solos difíceis. Para Ernst, se fossem avaliadas pela quantidade de biomassa que conseguem produzir e pela sua capacidade impressionante de suportar podas drásticas, elas não seriam categorizadas como vilãs do meio ambiente. Agricultores sintrópicos as usam como estratégia de recuperação de solos, ou seja, de poda, para que outras árvores mais exigentes consigam se estabelecer futuramente.

A poda obedece a critérios de estratificação e ciclo de vida, mantendo a distribuição ideal de indivíduos e luz ao longo dos andares da floresta (Fazenda Olhos D'Água)

A pulsão do sistema é quando o agricultor "segura" a sucessão por meio de podas drásticas e frequentes de todos os indivíduos. Essa prática é adotada sobretudo por produtores que têm foco em espécies de ciclo curto, como hortaliças (placenta I, II e III). Por meio da pulsão do sistema é possível repetir o plantio nos canteiros duas ou três vezes (retornar ao estágio.de placenta), até "soltá-lo" para que as espécies do próximo passo sucessional (secundárias I, II e III) possam dominar. Essa técnica também é utilizada para sincronizar espécies implantadas em diferentes momentos no sistema ou para enriquecê-lo com mais diversidade. Ernst Götsch sempre lembra que não se deve pulsar um sistema muitas vezes seguidas. Um ecossistema tem estágios de crescimento a cumprir – placenta, secundária e clímax – e mantê-lo em estágio de placenta promove, segundo Götsch, um "aborto" da floresta, ou seja, o solo degrada-se pela interrupção da sucessão natural.

A tabela acima ilustra a sucessão natural de uma área de Mata Atlântica. Lista de espécies: Ernst Götsch. Ilustração: Ursula Arztmann.

Leitura adicional:

ANDRES, C; COMOÉ, H .; BEERLI, A .; SCHNEIDER, M .; RIST, S .; JACOBI, J. “Cacau em monocultivo e agrofloresta dinâmica”. Em: Lichtfouse E. (eds) Revisões sustentáveis da agricultura., V (19). Springer, 2016.

SCHNEIDER, M .; ANDRES, C; TRUJILLO, G .; ALCON, F .; AMURRIO, P .; PEREZ, E .; MILZ, J. “Cacau e rendimento total do sistema de agrofloresta orgânica e convencional vs. Sistemas de monocultura em um experimento de campo de longo prazo na Bolívia ”. Agricultura Experimental, v.53 (3), pp. 351–374, 2017.

Felipe Pasini

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