Quem acompanha o trabalho do agricultor e pesquisador Ernst Götsch sabe que ele tem incluído espécies polêmicas em seus sistemas há alguns anos. Em destaque, dois clássicos: o capim e o eucalipto. A reação de quem ouve o conselho pela primeira vez é de espanto, afinal, a ficha criminal dessas plantas é longa. O eucalipto é acusado de secar o solo, de ter efeito alelopático e de ser exótico. Já alguns capins carregam a fama de serem plantas invasoras, daninhas e pragas. Às vezes herdamos alguns conceitos pré estabelecidos, e nem paramos para refletir sobre eles. Será que temos preconceito contra algumas plantas?
Fui testemunha ocular de alguns casos e quero compartilhar aqui com vocês, pois acredito que eles podem nos ajudar a olhar o capim por uma nova perspectiva. Sobre o eucalipto contamos em outra oportunidade
Origens de alguns tipos de capim
Vindos do continente africano, os gêneros Brachiaria e Panicum (colonião) são capins famosos tanto por sua resistência quanto por sua produtividade e, justamente por isso, fazem parte da lista de espécies consideradas invasoras. Antes de mais nada, é preciso saber quais são os objetivos de quem faz essas acusações. Um pecuarista e um agricultor têm visões bem distintas do capim. Para o primeiro, por exemplo, o capim é comida para o gado, para o segundo é uma praga que ocupa o lugar de suas plantas cultivadas. Leves e pequenas, suas sementes viajam para longe com o vento, nos bicos, patas e intestinos dos tantos animais que as comem. Devido à essa facilidade em se propagar e sua inquestionável adaptabilidade, esses capins foram declarados inimigos da agricultura e contra eles criou-se todo o tipo de defensivos, sejam eles mecânicos ou químicos.
Como diz o Ernst, por não falarem nossa língua, as plantas não conseguem se defender.
A perspectiva ética da sintropia nos convida a questionar muitas das convicções que fazem parte do establishment da agricultura e acaba por ressignificar o papel de algumas plantas.
O capim, assim como muitas "invasoras", é consequência da degradação, e não a causa dela. Ele é tão exótico para um ecossistema quanto também o são os impactos que facilitaram sua introdução e permanência. Em muitos locais, o ecossistema natural já não tem resiliência suficiente para lidar com tamanho distúrbio causado por nossa agromineração. As espécies que poderiam realizar a recuperação do lugar já foram extintas, ou simplesmente não conseguem mais crescer ali - já que naturalmente não estão adaptadas àquelas condições.
Ernst Götsch costuma dizer que, quando o ecossistema original não consegue mais lidar com o grau de destruição que lhe foi imposto, devemos usar espécies provenientes de locais menos privilegiados em água e nutrientes. Ou seja, recorremos às "guerreiras" como o eucalipto e o capim, para iniciar a recuperação do lugar, mesmo que depois eles sejam substituídos pelas nativas.
Essa estratégia, segundo Götsch, é a mesma praticada pela natureza que, em momentos de crise, se vale da plasticidade genética que dispõe para reestabelecer as dinâmicas sintrópicas que resultam da sucessão natural. Ao invés de rotular uma espécie como nociva, deveríamos investigar as condições em que se encontram as áreas "invadidas".
Lembra do vídeo em que o Ernst explica sua visão sobre as exóticas? Vale a pena ver de novo!
e a biodiversidade?
Para aqueles que dizem que os capins exóticos invadem áreas protegidas e por isso ameaçam a biodiversidade local, de novo caímos na armadilha do preconceito. Capim não invade área sombreada (nem eucalipto) - portanto, não são ameaça aos biomas florestais. Grosso modo, ele só encontra condições de prosperar em áreas alteradas.
O capim, nesse contexto, é uma das plantas que fazem os primeiros trabalhos de melhoria do solo. Por ser perene, suas raízes “soltam” e reestruturam a terra, abrindo caminho para a água, oxigênio, nutrientes e todo o tipo de organismos, melhorando o lugar para as espécies que virão no próximo estágio da sucessão (tal como acontece em qualquer lugar livre de nossa presença). Como resultado, o solo degradado, que antes só sustentava essas gramíneas rústicas, agora já consegue também abrigar arbustos e algumas árvores.
Com o passar do tempo, forma-se um bosque e o capim começa a enfraquecer por causa do sombreamento. No estágio de floresta, já terá ido embora, vítima ou mártir da sombra que ajudou a criar. Assumindo essa perspectiva, o ser humano (e os ecossistemas) se beneficiaria muito mais se, ao invés de investir tempo e dinheiro em uma guerra contra esses "matos", ele entendesse o papel ecológico dessas plantas e as usassem como a natureza o faz.
Os ambientes naturais não conhecem preconceitos e, enquanto as condições forem favoráveis, adotam espécies de tudo quanto é canto. Um dos efeitos colaterais de alguns discursos ambientais é a criação de certos fetiches por determinados conceitos ou bandeiras. Em um planeta que tem sido alterado por nós há milênios e que nunca viu tamanha destruição artificial, ao invés de criarmos mais guerras contra espécies, poderíamos aprender a manejá-las corretamente, de modo a levar o ambiente para um patamar melhor. Todos - nativos e exóticos - estão fazendo isso, exceto o ser humano.
O caso do "capim-gilete" na amazônia
Antes de testar uma espécie no campo, Ernst a observa em diversas situações. No Pará, tive o privilégio de acompanhá-lo durante anos em um projeto pioneiro de plantio de dendê em sistemas agroflorestais. Lá ele teve uma pista sobre como incluir o capim nos seus desenhos. Por se tratar de um sistema orgânico, o modelo incluía espécies cuja função principal seria a produção de biomassa. Submetidas à podas e roçagens regulares, essas plantas (margaridão, puerária, gliricídia, ingá, entre outras) iriam fornecer uma generosa cobertura vegetal às linhas das árvores, cumprindo a dupla utilidade de nutrir e proteger o solo. Em uma das áreas do projeto, o agricultor responsável fez uma adubação inicial com cama de aviário e, possivelmente, ali também havia milhões de sementes de uma planta rasteira de difícil manejo, o ervanço (Froelichia humboldtiana). O ervanço se espalhou rapidamente nas entrelinhas do campo, atrapalhando o crescimento das culturas principais e das plantas adubadeiras. Em algumas partes, o ervanço formou um tapete entrelaçado e cresceu para cima das árvores jovens. Uma espécie que também apareceu espontaneamente, no entanto, parecia não se incomodar: o capim colonião. Vez ou outra, era possível encontrar touceiras vigorosas com quase três metros de altura e, olhando bem de perto, notava-se que no entorno da planta o ervanço era fraco, pois não resistia à sua sombra. Além disso, o solo ao redor de suas raízes era mais úmido. Para o Ernst, a conclusão era óbvia. Aquele capim devia ser espalhado por todo o lado. Ele não só expulsaria o ervanço da área como também forneceria uma quantidade gigantesca de biomassa para o sistema. Se naquele período seco o capim exibia gordas touceiras, imagine o quanto produziria ao longo do ano, com 8 ou 9 cortes? Seria uma grande ajuda no desafio de garantir uma produção frequente de biomassa para manter o solo coberto - sobretudo na Amazônia, onde a decomposição de matéria orgânica é acelerada. Camadas mais generosas do capim cortado ao redor das mudas das árvores também iriam impedir que o ervanço se aproximasse. Na teoria, fazia sentido. Na prática, não conseguimos saber. A sugestão do Ernst encontrou uma barreira cultural. Aquele capim era odiado na região e o nome pelo qual é chamado diz tudo: capim gilete. Na medida em que envelhece, a planta fica mais fibrosa e com folhas cortantes. Embora fosse um problema contornável, a tradição falou mais alto. Naturalmente, tivemos que respeitar.
***escrito por Felipe Pasini | contribuições de Dayana Andrade | aprovado por Ernst Götsch