Agenda Gotsch

Um pouco da nossa história - primeiros registros

Desde que conhecemos o trabalho do Ernst, nosso compromisso de comunicar essa forma inovadora de cultivo só tem aumentado. Graças a muitos parceiros e a um público cada vez maior (e, acima de tudo, aos nossos queridos seguidores e apoiadores da área de assinantes), conseguimos dedicar mais tempo para produzir este trabalho. Aqui gostaríamos de compartilhar mais sobre quem somos e o que nos trouxe aqui, destacando partes dessa jornada enriquecedora de mais de uma década.

Nossa história começa em 2006, quando conheci o trabalho do agricultor suíço Ernst Götsch por meio de textos e artigos. Naquele tempo, eu já sabia que algumas experiências agroecológicas e agroflorestais de sucesso no país podiam ser rastreadas até chegar a ele. Sua influência era encontrada na Rede Ecovida, Cooperafloresta, em projetos inovadores no semiárido (Centro Sabiá) e empresas como a Michelin. No ano seguinte participei de um de seus cursos. Diferentemente da imagem que foi construída por alguns grupos que o viam como um tipo de guia ou mentor, não presenciei nenhuma referência esotérica ou espiritual. Era uma interpretação bastante coerente do que nos é possível observar do mundo natural, com um arcabouço conceitual bem definido.

Naquela época, eu trabalhava como diretor de uma pequena organização não governamental de produção audiovisual. Pedi ao Ernst para conhecer sua fazenda com a intenção de gravar uma reportagem informal sobre seu trabalho. Poucos meses depois viajei com as amigas Ilana Nina e Monica Soffiatti para Piraí do Norte, no sul da Bahia, onde ele vivia com sua esposa e duas filhas. A experiência de poucos dias revelou a minha ignorância no que diz respeito à agricultura e meio ambiente, e sobre a aparência que um campo agrícola deveria ter. Eu estava em meio a quase 500 hectares de floresta sistematicamente cultivada, sob rigorosos critérios técnicos, econômicos e filosóficos, onde cada pergunta era respondida de forma a explicar o equilíbrio entre essas dimensões. No domínio prático, Ernst desenvolveu métodos de poda, estratificação, capina seletiva, espaçamento de plantios, identificação e manejo das inúmeras influências que definem a saúde de um sistema. No campo teórico, submete suas decisões ao crivo de um conjunto de preceitos éticos construídos no decorrer dos seus mais de 50 anos de estudos e experimentações.

Fazenda de Ernst Götsch na Bahia, onde ele vive com sua família desde 1984 (foto: Felipe Pasini)

Quase tudo que comi durante aqueles dias, nunca havia experimentado na vida. A maioria era frutas, raízes e folhas da Mata Atlântica e da Amazônia. O lugar não era uma floresta tal como eu conhecia. Eu estava em um sistema agrícola que funcionava sob uma lógica diferente daquela que aprendi na escola, e cujo resultado era visível no campo, na mesa e no bolso, já que sempre havia o que vender.

Desde o início contamos com o carinho e hospitalidade do Ernst, Cimara, Ilona e Genevieve (em 2007, ainda dois bebezinhos lindos :-))

Da casa de Ernst seguimos para Jaguaquara (BA), para a fazenda de um de seus alunos mais antigos, Henrique Sousa. Lá os campos também funcionavam sob a mesma lógica. Nas áreas mais jovens viam-se três, quatro, às vezes cinco árvores crescendo a partir do mesmo ponto, plantadas de sementes no pé de cada mandioca. Ali estavam a banana, açaí, cacau, cupuaçu, abacate, jaca, mangueira, muitas espécies nativas e madeireiras. Os filhos de 10 e 9 anos nos apresentaram as plantações, descrevendo-as no espaço e no tempo, passado e futuro. O momento era de colher mandioca. Dali a pouco, seria a banana, depois o cacau, o açaí, e por aí vai. Em áreas mais antigas, de 8 a 10 anos de idade, a renda vinha das frutas, principalmente o açaí. Algumas árvores também semeadas desde o início, como o pau-balsa, agora serviam para fazer os caixotes que embalariam seus produtos. Pai de 6 filhos, sem emprego formal e vivendo em um lugar onde o estado mal chega, a propriedade de Henrique Sousa era um exemplo de organização familiar rural bem-sucedida, onde não só se via contemplada a segurança alimentar e de qualidade, como também o lazer, a renda e a educação. A 300 km de lá, em Cafarnaum, testemunhamos a terceira geração do legado de Ernst, agora em uma situação climática bem diferente. Sob orientação técnica do Henrique, o agricultor Jurandir cultivava mais de trinta espécies de plantas, produzia mel e leite em pleno sertão nordestino. Do solo seco, raso e pedregoso, o agricultor colhia o ano inteiro em um sistema sem irrigação e tecnicamente impecável, apoiado no plantio adensado de palma e sisal para posterior uso como um tipo de “hidrogel” nos períodos mais secos. O que se via era uma mudança na gestão dos recursos que já estavam disponíveis, uma reorganização do agricultor no espaço e em sua mediação com ele. Em poucas horas, me descreveu o que havia mudado em sua vida. Conheceu, pela primeira vez, uma mesa farta. A saúde da esposa que andava precária havia se reestabelecido. Entendeu reflexivamente a origem de algumas injustiças sociais e econômicas e sugeriu medidas para reverter os quadros de fome e miséria no sertão.

Henrique Sousa em 2007 na Fazenda Ouro Fino mostrando sua prensa manual que extrai o "mel de cacau". Hoje ele e a família gerenciam uma fantástica agroindústria na fazenda e também realizam workshops

Nessas três experiências descritas acima vi a concretização imediata de um novo tipo de agricultor, longe dos estereótipos culturalmente reproduzidos e associados ao sofrimento, à miséria e ao trabalho duro. Suas rotinas não apenas serviam ao propósito comercial inerente à atividade, mas também preenchiam lacunas tão necessárias quanto sutis no meio rural. Aqueles agricultores compartilhavam outras relações com suas terras e suas atividades. Sentimentos que conhecia por definição, mas não na prática. A visita rendeu o minidocumentário Neste Chão Tudo Dá que foi exibido pela TV Escola durante seis anos, e tornou-se material didático recomendado pelo MEC à rede pública de ensino.

Depois dessa experiência, um novo universo começou a fazer sentido para mim. Antes, eu via a agricultura tal como outra atividade qualquer. A partir dali, começou a amadurecer a percepção de que a agricultura é o pivô de nossa sociedade, e somente por meio dela podemos entender e construir uma nova humanidade, mais consciente das consequências das nossas intervenções na natureza.

Nos anos seguintes, nos aproximamos ainda mais de Ernst e de seus brilhantes alunos. Participamos de vários projetos na Amazônia, depois veio o Agenda Gotsch, telenovela Velho Chico, Fazenda Escola São Sebastião, Life in Syntropy e assim por diante. Mais de uma década de aprendizados práticos e teóricos. Compartilharemos cada etapa dessa trajetória nos próximos posts.

*** Esse texto é extraído e adaptado do preâmbulo da dissertação de mestrado: "A Agricultura Sintrópica de Ernst Götsch: história, fundamentos e seu nicho no universo da Agricultura Sustentável", disponível para download no site do  PPG-CiAC – Nupem (UFRJ)

Felipe Pasini

6 comentários

  • Não tem palavras de apreciação, você nos enche de orgulho! Sabia que viria a coisa muito boa mas não imagina tanto, vai aguardar ansiosa os próximos! Bjs

    • Obrigado pelo carinho de sempre tia. Suas palavras têm mais efeito do que pode imaginar… beijos beijos 😗😗

  • Incrível!
    A Agricultura Sintrópica clareou a minha visão sobre a vida 🙂
    Nós podemos fazer este mundo um paraíso
    Muita gratidão a tod @ s que tornar a Life in Syntropy possivel ~; ~

    • Muito obrigado Ormando! Palavras como as suas nos estimulam a seguir em frente. 😊😊😊 um grande abraço de toda nossa equipe

  • Obrigado pela dedicação! Este é um lindo trabalho!
    Estou no sul do Brasil, região da serra gaúcha, cidade do ano. O ritmo de desenvolvimento dos vegetais muda drasticamente. As janelas de plantio são limitadas, com o maior número de espécies de implantação, mas são difíceis de serem perdidas, agir e perder o prazo. Muitas sementes coletadas no meio / final do verão, por exemplo, não podem esperar o fim do inverno para colocar na terra. Como as bananas precisam de ajuda para enfrentar a geada desde o início. Se uma clareira é aberta na mata no inverno, uma sucessão inicial será um pouco diferente da uma clareira aberta na primavera. E assim por diante, esses são os desafios de quem está iniciando nos voos da agricultura sintrópica, não frio! Espero que em breve possam resgatar e relatar as experiências dessa região para compartilhar!
    Abraços!

    • Olá Cristiano! Obrigado por compartulhar sua experiência. De fato uma geada complica a vida da banana. De toda forma, um sistema altamente estratificado ajuda a proteger algumas plantas contra uma geada. Começou a trabalhar em climas mais frios a partir de setembro, onde também ha geada. Espero que o arquivo faça com mais informações útil. Você é um agricultor fazendo um trabalho bonito em Chuí? Basta me enviar um email para felipe.pasini@lifeinsyntropy.org. um forte abraço e obrigado pelas palavras de apoio. 😊

Siga nosso trabalho